sexta-feira, 21 de setembro de 2007


- Ian, nem sabemos se a menina está viva – Cecile segurava meu braço com a mão tremula – Ou se está inteira. Se encontrarmos pedaço de gente aqui, terá que me carregar de volta!
- Ela está viva, sei que está – falei olhando ao redor e apontando a arma para um arbusto que se mexeu – Sinto isso

Desaparatamos do St. Napoleon depois de comunicar à recepcionista para onde íamos e passamos na casa de meus pais, em Marselha. Fui direto até a cabana onde vovô quadrava as armas de caça e peguei duas, enchendo a mochila de balas de prata. Se vamos andar entre lobisomens, é bom estar preparado. De que adianta aparatar antes de encontrar a criança? Não me agradava fazer isso, sei que eles são pessoas e que perdem o controle durante as transformações, mas era o meu que estava na reta.

- O que foi? O que se mexeu? – ela apertou meu braço com força
- Não era nada – abaixei a arma – Se acalma, e fique com a varinha na mão, não sei o que mais tem aqui além de lobisomens

Andamos por mais alguns quilômetros floresta adentro e encontramos o local onde era o acampamento. Estava tudo destruído, e tinha sangue pra todo lado. Um dos mortos ainda estava caído por lá, e tinha o rosto desfigurado. O arbusto perto de onde estava a fogueira se mexeu rápido e um vulto marrom voou na nossa direção. Não pensei duas vezes antes de disparar a arma na direção dele e um lobo imenso caiu morto no chão. Empurrei uma arma para Cecile dizendo para atirar em tudo que se movesse e logo mais dois lobisomens surgiram atraídos pelo barulho dos tiros. Derrubamos os dois antes que eles avançassem, mas percebi que duas armas carregadas com balas de prata talvez não fossem o suficiente se mais viessem.

- Ian, é óbvio que ela não está no chão! Ela está escondida!
- Mas ela só tem dois anos! Pra onde pode ter ido?
- Quando eu era pequena me perdi dos meus pais em um acampamento desses, nossas barracas foram atacadas por centauros. Eu me escondi em cima de uma árvore, e fiquei nela até alguém me encontrar
- Ah ok Cheeta, está sugerindo pular de árvore em árvore até encontrar a menina? Não estou me sentindo como o Tarzan hoje, se não se incomoda!
- Olhe para cima, seu idiota! – ela pisou no meu pé e apontou para o alto

Olhei para cima e vi um par de tênis pendurado em um galho muito alto. Olhei para Cecile espantado, como uma criança de dois anos pode ter subido até lá?
Larguei a mochila no chão com Cecile e comecei a subir na árvore. Confesso que estava um pouco fora de forma, não faço isso desde que era criança, mas consegui chegar até o par de tênis. A dona dele era uma menina loirinha com olhos azuis quase brilhantes. Ela estava sentada encolhida em um tronco mais grosso e apesar do terror que passou e tudo que possivelmente presenciou dali de cima, não aparentava ter chorado.

- Oi – falei sentando ao lado dela – Você é a Gabriela?
- Sim – ela olhou pra mim com uma expressão séria – E você? Quem é?
- Eu sou o Ian – estendi a mão e ela apertou. Segurei-me para não rir com a solenidade daquela menina – Sua mãe pediu pra eu vir buscar você.
- Onde ela está?
- No hospital, junto com seus tios. Como você subiu até aqui?
- Meu papai me deixou aqui, disse que era pra eu ficar bem quietinha e não fazer barulho, que alguém ia vir me buscar depois. Eu não me mexi, nem quando senti vontade de ir ao banheiro.
- Muito bem, então agora vou levar você até eles

Mas nem cheguei a estender a mão para que ela segurasse e começasse a descer comigo. Um estampido alto nos assustou e Cecile apareceu sentada no galho acima do nosso. Ela tinha uma expressão de terror no rosto e não foi preciso dizer o que era. Olhei para baixo e três lobisomens arranhavam o tronco da árvore, tentando subir. Um deles de fato começava a obter sucesso.

- Vamos ter que desaparatar até o hospital – falei com a voz vacilante. O lobisomem já havia alcançado o primeiro nível da árvore – Você já aparatou com alguém antes?
- Não – Cecile respondeu com a voz tensa – Não passei com louvor no teste, pode ser perigoso.
- Bom, eu também nunca fiz isso, mas não há meio de descer e ir a pé, não concorda? – olhei para baixo e engoli seco antes de me virar para Gabriela – Segure em mim com força, ok? Não solte, sob hipótese alguma, entendeu?
- Você vai me levar de volta pra minha mamãe? – ela perguntou me abraçando com força
- Sim. Eu espero – falei baixo antes de me concentrar no hospital e girar o corpo

Senti uma pressão em volta de mim e a floresta desapareceu, dando lugar a um corredor com paredes muito brancas. Procurei por Gabriela e vi que ela ainda estava abraçada a mim, de olhos fechados. Cecile estava no fim do corredor e levantou do chão correndo até mim quando viu que estávamos bem. Logo voltamos ao primeiro andar e Gabriela se atirou nos braços da mãe. Ela já tinha dado a luz ao bebê e vi que ele estava cercado por Curandeiros em uma ala separada. Laport veio até nós quando nos viu.

- Que bom que estão bem. Sinto muito tê-los enviado até lá, mas não havia outra alternativa. Dos estagiários que entraram esse ano, vocês são os únicos capacitados a sair com vida desse tipo de emergência, todos os outros teriam morrido.
- Quando eu me inscrevi para a vaga, não dizia nada sobre correr risco de morrer, Laport – disse tentando soar relaxado, mas não colou
- Eu disse no primeiro dia que o trabalho não seria apenas ficar aqui dentro limpando feridas, mas sempre é tempo de desistir
- O que aconteceu ao bebê? – Cecile falou olhando por cima do ombro de Laport – Ele é um lobisomem também?
- Não sabemos ainda, é muito cedo. Mas se querem minha opinião, infelizmente ele não escapou. A mãe foi infectada, e ele ainda estava ligado a ela pelo cordão umbilical. Demoraram tempo demais para chegarem aqui, o sangue dele foi infectado também.
- Mas um bebê recém-nascido sobrevive a uma transformação? – perguntei alarmado
- Nunca soube de um caso como esses, mas as chances dele são poucas – Laport olhou para o bebê cercado de adultos e suspirou – Podem ir para casa, estão de folga amanhã. Eu ainda preciso ficar, vou acompanhar a mãe e examinar a menina que vocês trouxeram. Boa noite.

Cecile deu um sorriso fraco pra mim e se despediu, sumindo pela porta da sala dos funcionários. Olhei no relógio, eram 2 da manhã. Meu corpo doía, pedia por uma cama confortável e quente, mas não fui embora. Fiquei parado olhando pelo vidro a ala onde os feridos do ataque estavam sendo cuidados, pensativo. Das cinco pessoas sobreviventes, apenas aquela garotinha não havia sido mordida. Seu pai foi atacado e quase dilacerado minutos depois de deixá-la no alto da árvore e ela presenciou tudo. Laport conversava alguma coisa com a mãe dela quando senti meu jaleco sendo puxado. Olhei para baixo e Gabriela estava sorrindo pra mim. Sorri de volta e me abaixei para ficar da altura dela.

- Onde está a sua amiga? – ela perguntou com o mesmo jeito solene
- Foi pra casa descansar. Você está bem?
- Sim. Meu papai foi pro céu e minha mamãe agora vai virar um cachorro grande e mal – ela olhou para o braço arranhado na hora da fuga – E meu irmãozinho também, mas ele não vai ser mal, vou ensinar ele a não morder as pessoas
- É, morder é feio, e você é a irmã mais velha dele, tem que ensinar essas coisas – segurei o braço dela e olhei o arranhão – Onde machucou o braço? Foi um dos cachorros?
- Não – ela sacudiu a cabeça – Papai não deixou ele se aproximar, foi na árvore. Eu não vou virar um cachorro também, vou?
- Não, se eles não machucaram você, você não é uma deles
- Bom. Sou alérgica a pêlo de bicho, tive que doar meu gatinho – não consegui segurar o riso dessa vez e ela me olhou curiosa – Você é engraçado pra um curandeiro
- Acha que sou engraçado? E por quê?
- Porque os outros curandeiros nunca riem, estão sempre sérios. Gostei mais de você.
- Que bom, porque eu também gostei de você
- Eu vou pra casa da vovó quando ela chegar... Posso ver você quando vier visitar minha mamãe e meu irmãozinho?
- Claro que pode! Se não me procurar, vou ficar chateado
- Gabriela! – ouvi a voz de uma senhora no corredor e olhei para trás
- Vovó!

A garotinha saiu correndo e pulou nos braços da senhora. Sorri para ela e caminhei até a sala dos funcionários, decidido a ir para casa descansar. Cecile ainda estava dentro da sala quando entrei, estava de joelhos no sofá olhando por trás da cortina. Ela sentou quando entrei e ficou me encarando com um sorriso esquisito.

- O que foi? Pensei que já estava em casa
- Você tem irmãos menores, Ian?
- Não, sou filho único. Por quê?
- Então você tem muito jeito com crianças... – ela riu e levantou do sofá - Ela gostou de você
- É meu charme natural – brinquei
- Se é charme natural eu não sei, mas sei que você vai ser um ótimo pai
- Eu? Pai? – comecei a rir
- Porque a risada? Não pensa em se casar e ter filhos?
- Casar sim, filhos provavelmente como conseqüência do casamento, mas Marie e eu só temos 17 anos! Posso lhe assegurar que não estamos cogitando essa possibilidade agora
- Não disse agora, mas um dia... – ela sorriu e jogou a mochila nas costas – Nos vemos depois de amanhã, vou aproveitar a folga para dormir o dia inteiro. Boa noite! – e desaparatou

Guardei minhas coisas no meu armário e peguei a mochila, saindo do hospital. Não desaparatei, estava com vontade de caminhar e levei cerca de meia hora para chegar em casa. Dominique e Bernard dormiam pesado quando entrei e me atirei na cama sem nem ao menos trocar de roupa. Dormi no mesmo instante, e sonhei com o nascimento de um bebê loirinho e fortes olhos azuis. Um bebê com feições familiares, mas que quando acordei, não lembrava mais de seu rosto...