domingo, 11 de janeiro de 2009


* Julho de 1999 *

Hospital St. Napoleon


- O que acha que estão falando? – Pierre encostou no balcão ao meu lado, indicando uma das salas da emergência ocupada pelos nossos supervisores
- O que eu não sei, mas sem duvida estão falando da gente – respondi pegando uma ficha da caixa e fitando a janela de vidro. Laport nos encarou e fechou a cortina.
- Merlin, hoje isso aqui está um inferno! – Cecile voltou ao balcão depois de atender um paciente e tinha o jaleco sujo. Olhamos para ela e rimos – O que foi? O homem vomitou em mim, não deu tempo de limpar ainda.
- Scourgify – disse apontando a varinha para o jaleco dela e ele voltou ao normal.
- Obrigada – Cecile sorriu e olhou para a cortina fechada – Então? Já descobriram o quanto estamos ferrados?
- Como assim? – Pierre me olhou alarmado e depois para ela – Eles estão só nos avaliando, não?
- Claro, mas essas avaliações podem definir nosso futuro aqui – Cecile falava com uma calma invejável – Se formos mal nessa avaliação, podemos nunca chegar a sermos Curandeiros.

Olhamos pra cortina ainda mais apreensivos e a porta se abriu de repente. Saltamos assustados, mas nem deu tempo de disfarçar e correr para atender algum paciente. Os curandeiros saíram da sala e Laport parou no balcão, pegando três fichas da caixa.

- Vocês não têm nada de útil para fazer? – disse entregando uma ficha pra cada um – Então vão cuidar desses pacientes e me apresentem em 15 minutos.

Cecile e Pierre saíram depressa para atender os pacientes e olhei rápido para minha ficha, era um paciente com catapora de dragão. Laport pegou mais algumas e saiu em direção ao elevador. Corri atrás dele e o alcancei.

- Seu caso é nesse andar, Ian – disse quando segurei a porta do elevador e entrei.
- Estavam nos avaliando? – perguntei logo, mas ele não respondeu. Continuei assim mesmo – Olhe, se estiver indo mal nas rondas, me avise, por favor. Nada vai me fazer desistir de ser um Curandeiro, então se tiver algo que precise melhorar, gostaria de saber.
- Você é um ótimo estagiário, Ian – Laport falou sério – Ainda tem muito a aperfeiçoar, como os outros também têm, mas esse aperfeiçoamento vem com o tempo. Fico feliz em saber que nada faria você desistir de ser um Curandeiro. Agora vá atender seu paciente, antes que mude minha avaliação.
- É pra já, chefe - bati continência e ele riu, saindo do elevador de volta ao segundo andar
- Ian? - ele segurou a porta antes que ela fechasse e olhei para trás – Se quer alguma coisa com que se preocupar, fique de olho no Dubois. Ouvi dizer que está querendo a presidência do hospital e para ele, você é uma pedra no caminho até ela.
- Como? – perguntei espantado
- Apenas fique de olhos abertos – ele apertou o botão do elevador e a porta começou a se fechar – E você não ouviu isso de mim.

A porta do elevador fechou e fiquei encarando a porta dourada sem reação. Sabia que vovô tinha a intenção de deixar a presidência do hospital para mim, mas ainda não estava preparado para assumir essa responsabilidade. Mas por outro lado, sabia que se Dubois chegasse até ela, eu estava fora do páreo para sempre. Talvez até fora do St. Napoleon.

*******

Abri a porta do apartamento e Samuel entrou com uma garrafa de vinho na mão, me abraçando e quase me derrubando, empurrando a garrafa pra mim. Anne entrou atrás dele e me abraçou também, mas como uma pessoa normal. Fiz uma reverencia indicando o centro da sala e eles entraram, se juntando aos outros e já fazendo a bagunça habitual. Estava comemorando meu aniversário de 19 anos e reunia os amigos mais próximos em casa. E quando digo amigos mais próximos, quero dizer que tinham aproximadamente 50 pessoas na casa. Gabriela estava na casa dos meus pais aquela noite, por insistência da minha mãe, que ficou receosa de deixar ela no meio de 50 bruxos festeiros.

- E ai, Ian? – Viera jogou o braço no meu ombro, a outra mão ocupada com uma taça de vinho – Conta pra gente como é a vida de pai?
- É Ian, fala ai como está se virando cuidando de um bebê – Rubens falou rindo – Apostei com Dominique que ia pedir socorro a sua mãe em uma semana!
- Eu pedi socorro sim, é claro – respondi entrando na brincadeira – Mas demorei mais que uma semana. Só pedi ajuda quando não agüentava mais não dormir. Mas tenho bastante ajuda por aqui. Dominique e Bernard estão se saindo tios de primeira linha, sem contar a ajuda da Marie e da Mad, que estão sempre por aqui.
- Claro que estamos sempre aqui – Marie me abraçou e me beijou, rindo – Eles tomam conta da Gabriela e nós tomamos conta deles. A casa fica parecendo um campo de concentração, é um horror.
- Eles ainda não estão aptos a trocar ma fralda ou fazer uma mamadeira sem explodir a cozinha e gastar 2 metros de lenço... – Mad entrou na conversa e os outros riram.
- Mas é tão... Nojento! – Dominique fez uma careta e rimos
- Ah, não é tão ruim assim – Bernard entrou na roda abraçado a Bel – Eu gosto de cuidar dela. E é um meio de treinar, pra quando tiver os meus... – e lançou um olhar a Bel, que corou na hora quando começamos a assobiar.
- Não tem musica nessa festa não? – Isa veio atraída pelos assobios – Se não dançar, vou começar a ficar tonta!
- Apoiada! – Manu saiu do abraço de Viera e correu até o som, colocando uma das Esquisitonas – Vamos dançar, minha gente!

Manu voltou à roda e puxou Viera pela camisa, que foi atrás dela sem largar a taça. Puxei Marie pela mão e me juntei a eles, e logo todos já estavam ocupando a área vazia da sala, transformando ela em pista de dança. No dia seguinte não tinha plantão e aproveitei esse presente involuntário do hospital para curtir meus amigos, como há muito tempo não fazia. Considerava aquela a fase mais feliz da minha vida, até o momento. A festa rolou até quase de manha e quando Viera saiu por último, fechando a porta, capotei no sofá. Marie encheu mais duas taças de vinho e deitou por cima de mim, beijando meu pescoço.

- Por que parou? – falei desapontado quando ela interrompeu a sessão de beijos e deitou a cabeça no meu peito – Estava tão bom...
- Se quiser mais, vai ter que fazer alguma coisa também – respondeu me provocando e ri.
- Fazia tempo que não ficava até essa hora numa festa – comentei cansado, olhando a bagunça espalhada pela sala – Se não fossemos bruxos, íamos levar dias pra restaurar a ordem na casa. Mas foi bom.
- Foi ótimo, estava com saudades do pessoal. Adorei rever o Samuel, Sávio, Dora e Isa, fazia tempo que não os via.
- E foi bom também ver que o casamento do Rubens com a Nicole está bem. Tinha minhas dúvidas, mas que bom que estava errado.
- Falando em casamento... – Marie riu – Acho que Bernard vai nos surpreender em breve. Viu a indireta que ele jogou pra cima da Bel?
- Se ele casar com a Bel logo, Gabriela vai ter seu próprio quarto – ri também – Mas em compensação, Dominique vai ser o único a me ajudar 24 horas por dia. Coitada da minha filha...
- Se Bernard se casar logo, posso ficar aqui mais tempo ajudando. Dominique não dá conta sozinho, e não quero que a primeira palavra dela seja “gatinha”. – Marie falou fazendo careta
- Gosto quando você fala assim dela, tomando decisões – me ajeitei no sofá para conseguir olhar direito para ela – Faz parecer que ela é sua filha.
- Bom, eu já me sinto meio que mãe da Gabi – Marie sorriu um pouco sem graça – Passo tanto tempo com ela que é como se ela fosse minha filha.
- Casa comigo? – falei de repente e ela arregalou os olhos
- O que? – sentou-se direito no sofá, me olhando assustada.
- Casa comigo? – repeti, agora certo do que estava dizendo – Eu te amo, e você sabe o quanto. Você já se sente mãe da Gabriela, só falta a gente se casar.
- Desculpa, mas é que foi meio inesperado – ela gaguejou um pouco.
- Mas não tanto assim, você sabia que mais dia menos dia eu ia pedir. Então? Aceita se casar comigo?
- Sim – Marie sorriu e me abraçou, me dando um longo beijo em seguida – Claro que eu caso com você. Eu também te amo.

Estava certo. Aquela era mesmo a fase mais feliz da minha vida.
domingo, 21 de setembro de 2008


Maio de 1999

- Vamos repassar tudo – Viera tinha a mão repleta de papéis e tentava fazer com que prestasse atenção – Ian! Pare de olhar para eles, preste atenção em mim.
- Desculpe. Pode falar, estou ouvindo.

Estávamos no tribunal bruxo e o casal que tentava adotar minha filha estava sentado com o advogado deles na mesa ao lado. Era a primeira audiência e Viera começou a repassar comigo tudo que havíamos combinado. A situação era, de longe, favorável a eles, mas eu não ia desistir. O juiz entrou alguns minutos depois e a audiência começou.

Os advogados de ambos os lados falaram e depois tanto eu quanto o casal passamos por uma bateria de perguntas. À medida que o tempo ia passando e aquilo ia se estendendo, ia ficando nervoso. Tinha medo de que no fim, não pudesse levar minha filha para casa. Não ia suportar isso, sabendo da existência dela. O casal também parecia preocupado em perder a causa, pois sabiam que por mais que tivesse muitos pontos a favor, o que contava mais estava do meu lado.

Mais de duas horas depois, o juiz marcou outra audiência para o mês seguinte. Viera juntou os papéis na pasta e esperou até que os outros tivessem saído para falar.

- E então? Quais as minhas chances? Seja sincero!
- Esse juiz preza muito o fator família, é mais favorável a eles por serem casados, terem uma vida estável e tudo mais. Mas você não está sozinho, na próxima audiência vamos trazer seus pais, que se prontificaram a ajudar. E ele também gostou de você estar tão empenhado em obter a guarda dela, então não está nada decidido ainda.
- Viera, se eu não...
- Deixe pra pensar nisso depois. Vamos almoçar? você tem o dia de folga hoje, certo?

Assenti com a cabeça e deixamos o tribunal. Passamos boa parte da tarde em um restaurante no centro de Paris discutindo sobre o que fazer na próxima audiência e do que poderia dar errado para ambos os lados. No fim, estava confiante. Tinha tantas chances quanto eles.

°°°

Junho de 1999

- Advogados, por favor, aproximem-se

Viera se levantou e caminhou até a bancada do juiz com o outro advogado. A 2ª audiência pela guarda da Gabriela já se encaminhava para a 3ª hora e parecia que não chegaríamos a lugar algum. Eles demoraram um tempo conversando em voz baixa e Viera voltou para a mesa.

- Eles querem fazer um acordo sobre a guarda dela – disse incerto, olhando para o advogado que esperava uma resposta
- Acordo? – falei irritado e alto – Ela não é uma mercadoria, não vou negociar a minha filha!
- Foi o que pensei – ele sorriu e voltou até lá, fazendo sinal negativo com a mão

Conversaram mais um tempo e quando retornou para a mesa, o juiz deu um recesso de 30 minutos para continuarmos. Viera ficou dentro do tribunal e sai para tomar um café na lanchonete. Estava pagando quando fui abordado pelo casal Prevost.

- Podemos conversar? Em off? – o homem chamado Pascal falou sério e concordei, indo sentar em uma das mesas com eles
- Não sei o que querem dizer, mas não vou fazer nenhum tipo de acordo e muito menos desistir. Sei que vocês não podem ter filhos, e sinto muito por isso, mas há outras crianças para serem adotadas, e crianças sem pais. Gabriela tem uma família e é com ela que ela vai ficar.
- Nós sabemos, se acalme – ele tornou a falar – É por isso que estamos aqui. Minha mulher e eu conversamos e tomamos uma decisão – ele apertou a mão dela e o que quer que fosse não tinha sido fácil para ela ceder – Nós vamos abrir mão da guarda da Gabriela. Como você disse, ela tem um pai e uma família, não é justo afastá-la disso tudo.
- Estão falando sério? – levantei da mesa surpreso e eles levantaram também – Estão dizendo que...
- Vamos falar com o nosso advogado quando o recesso terminar. Acabou. Você ganhou.
- Isso não era uma competição – disse apertando a mão dele e ele balançou a cabeça em concordância.

Quando voltamos à sala, contei a Viera o que tinha acontecido e alguns minutos depois o advogado deles pediu a palavra, comunicando que eles estavam cedendo a guarda de Gabriela a mim. O juiz encerrou o caso e agradeci a eles, indo abraçar minha mãe em seguida. Saímos do tribunal direto para a casa deles, onde a babá cuidava dela, e a levei para casa. Sua casa. Bernard, Marie, Dominique e todos os meus amigos, avisados por Viera, já nos esperavam no apartamento e fizeram uma grande festa quando cheguei com ela no colo. Não conseguia me lembrar de um dia ter me sentido tão feliz assim.
quarta-feira, 21 de maio de 2008


- Consegue ver? – Dominique sussurrou apertando os olhos
- Sim – respondi me apoiando nos cotovelos e ajustando o binóculo – Estão na sala, ele está tentando fazê-la comer. Cospe nele, anda...
- AH! Eu sabia!

Um estampido alto espantou os passarinhos que estavam pousados nos arbustos e saltamos do meio das folhas com o coração disparado. Bernard estava parado na nossa frente de braços cruzados e um olhar reprovador. Ele olhou para a casa a alguns metros de distancia de onde estávamos e balançou a cabeça com aquele jeito que me lembrava meu avô.

- É isso que faz em seus dias de folga? Espiona a família que está cuidando da Gabriela? – Bernard se virou para Dominique e lhe acertou um tapa – E você ainda ajuda?
- Não sempre, só quando Dominique também está de folga – respondi rindo, mas ele continuou sério
- Você sabe que não pode ir até lá, não é?
- Não, não sabia! É que adoro deitar na terra suja, por isso estou desse lado da rua! – disse irônico
- Por Merlin, Viera está tentando organizar as coisas para que possam entrar com o pedido da guarda dela, não vá complicar as coisas.
- Não estou tentando complicar nada, só queria vê-la um pouco, mesmo que dê longe
- Sei que é ruim, mas se você fizer alguma besteira, pode perder as chances que tem – Bê falou mais calmo e recolhi as coisas do chão – Vamos embora.

Dei uma última olhada na casa onde o homem agora limpava a papinha do rosto e do chão e desaparatamos de volta para nosso apartamento em Paris. Já estava viciado no rosto dela, e era difícil passar um dia sem poder vê-lo, mesmo que de longe...

ººº

O plantão no St. Napoleon estava mais movimentado do que nunca. A todo instante entrava alguma emergência nova e já não estava mais dando conta de atender tantos pacientes ao mesmo tempo sem errar algum diagnostico. Laport tentava ajudar Cecile e eu ao máximo, mas ele também estava ocupado e não podia fazer muita coisa. A coisa estava beirando ao caos e fez Dubois finalmente admitir que precisávamos da ajuda dos plantonistas de folga. Quando o reforço chegou, ele liberava grupos alternados para terem 10 minutos de descanso. Mas não tinha nem se passado 2 minutos que estava deitado no sofá da sala dos curandeiros quando Cecile abriu a porta, acendendo a luz.

- Estou no meu horário de descanso – falei antes que ela me chamasse – Se for o Papa chegando numa maca, peça para ele esperar mais 8 minutos
- Não é o Papa, é a sua namorada. Chegou com o braço cheio de hematomas, achei que quisesse saber...

Ela apagou a luz outra vez e ia fechar a porta, mas com um único salto a alcancei e sai correndo para fora. Ela apontou na direção da sala de exames 3 e abri a porta depressa, assustando tanto Marie quanto Mad, que estava ao lado da cama, e Pascal, o cão de guarda de Dubois que estava cuidando do caso.

- O que aconteceu? – perguntei assustado, me aproximando dela
- Nada grave, calma – Mad se prontificou a explicar – Estávamos testando alguns feitiços de proteção para uma galeria nova do museu e um deles saiu errado
- Parece que torceram seu braço! Como isso é só ‘dar errado’?
- Eu estou cuidando do caso, Renoir – Pascal falou autoritário – Não está em seu horário de descanso? Não deveria estar aqui.
- Vaza, ô capacho – falei espantando ele com a mão – Eu cuido disso!
- Você não tem autoridade para designar alguém de um caso! Só Dubois pode fazer isso. Em segundo caso, o Laport!
- O que está acontecendo aqui? – Laport chegou bem na hora, olhando dele para mim
- Renoir acha que pode impor suas vontades apenas por ser neto do diretor. Está tentando delegar tarefas, e essa não sua função
- Não estou tentando delegar tarefas! – me defendi irritado – Disse apenas que ele podia sair que eu cuidava dela.
- Er... Desculpa interromper a conversa, mas meu braço está doendo! – Marie reclamou e corri até ela
- Quem pegou o caso primeiro? – Pascal levantou a mão obediente e entregou a ficha dela a ele – Então ele cuida da Srtª. Laforêt, Ian. Deixe que Pascal faça seu serviço e se não quer mais desfrutar dos minutos que lhe restam de descanso, pode olhar o senhor com orelhas murchas na sala 7.

Peguei a ficha da mão dele contrariado e sai da sala. Atendi o homem das orelhas e voltei para a sala onde Marie estava. Pascal não me deixaria entrar, então sentei no banco do lado de fora para esperar. Mad saiu quando me viu e sentou ao meu lado.

- Ele é bem metidinho, mas não é um mau curandeiro – falou indicando Pascal com a cabeça
- Ele é um dos melhores estagiários que tem aqui, mas queria cuidar dela. Desde o dia que contei sobre o bebê que não via Marie. Ela me evita, e agora chega aqui machucada.
- Foi um baque pra ela também, mas acho que já está disposta a conversar com você
- Por que acha isso? – perguntei sentando reto no banco, esperançoso
- Porque tem um curandeiro de plantão no Louvre que resolveria isso em 1 minuto, mas ela insistiu que a trouxesse para cá...

Sorri e olhei Marie por trás do vidro. Pascal rabiscava uma receita em um pedaço de papel e a dispensou, com uma atadura no braço. Passou direto por mim e Marie vinha logo atrás, mas parou quando nos viu. Mad levantou depressa e saiu, deixando ela se sentar em seu lugar.

- Está tudo bem? – apontei para seu braço
- Sim, não foi nada demais. Amanhã ele volta ao normal.
- E entre a gente?
- Eu exagerei um pouco, mas é que não esperava por isso.
- Então seja bem vinda ao clube dos que foram pegos de surpresa! – ela riu
- Como está se sentindo agora que sabe que é pai?
- A idéia de que vou servir de modelo para uma criança é assustadora. Eu não sirvo de exemplo nem para mim mesmo!
- Com o tempo você se adapta, vai dar tudo certo. Vamos todos ajudar no que for preciso.
- Estamos bem mesmo?
- Sim, estamos bem.
- Não faz idéia de como senti sua falta
- Também senti a sua
- Quando sair daqui vou encontrar o Viera para ele me explicar como vai funcionar esse processo todo pelo qual vou passar. Quer ir comigo? Depois podemos sair para jantar.
- Claro que vou com você. Vou ficar do seu lado, e prometo que nunca mais vou sair.

Sorri aliviado e a puxei para um beijo demorado. Laport passou por nós dois algum tempo depois jogando 5 fichas em cima de mim e batendo no relógio. Mad também apressou Marie, pois ainda tinham que voltar ao trabalho. Fiquei observando as duas saírem do hospital antes de levantar para atender os pacientes e respirei fundo, começando a ler as fichas. Tudo ia ficar bem agora.
terça-feira, 1 de abril de 2008


Um mês atrás...

- Ian, sente-se, por favor – minha mãe pediu pela 5ª vez, mas não lhe dei ouvidos
- Ela não tinha esse direito! – berrei com raiva e ela não se abalou – Não podia decidir sozinha!
- IAN! – ela berrou tão alto quanto eu e parei de andar - Senta agora nesse sofá ou vou lhe acertar um tapa! – mamãe falou ríspida e sentei assustado – Vai me deixar falar? – fiz que sim com a cabeça e ela sorriu – Bom, muito bom. Comece explicando porque tive que ir até Saint Tropez tirar você de uma delegacia trouxa, por favor...

Ela sentou ao meu lado e respirei fundo, começando a relatar o que tinha acontecido depois que descobri ter uma filha e que ela estava em um orfanato. Havia procurado o lugar e quando a senhora me informou que o bebê não estava mais lá e não podia me dar o endereço do casal que estava tentando adotá-la, perdi a cabeça. Arrumei um verdadeiro barraco na recepção exigindo saber para onde tinham mandado minha filha e a senhora chamou a policia trouxa. Cecile foi quem ligou para minha mãe, sem saber o que fazer.

- Desculpe, mas fiquei transtornado e perdi a cabeça
- Tudo bem, você sofreu um baque muito forte. Mas saiba que foi a 1ª e última vez. Aprenda a controlar isso, pois se acontecer outra vez terá que se virar sozinho. – assenti com a cabeça e ela sorriu – Então, quer dizer que sou avó?
- Não sei o que fazer, mãe. Pela primeira vez não sei qual deve ser meu próximo passo
- Não se preocupe. Estamos do seu lado e faremos de tudo para ajudá-lo a encontrá-la. Essa criança será criada na nossa família, que é o lugar dela. Mas agora a única coisa com que deve se preocupar é em contar a Marie, pois ela é sua namorada e tem o direito de saber. Vá falar com ela e deixe que eu mesma conto ao seu pai e seu avô. Amanhã, quando você estiver com a cabeça fria, vamos sentar e conversar para saber o que fazer.

Mamãe beijou minha testa e levantou, indo para o escritório e fechando a porta. Ainda fiquei alguns minutos no mesmo lugar, encarando o chão, até que levantei também e desaparatei direto para o prédio onde Marie morava. Ela ainda estava no trabalho e fiquei sentado no corredor esperando ela chegar. Tentava descobrir uma maneira de contar a ela, mas por mais que batesse a cabeça na porta, a resposta não vinha. Só conseguia visualizar Terri contando que abandonou a criança em um orfanato, e a senhora da recepção me dizendo que ela não estava mais lá.

- Luke? – ouvi a voz de Marie no corredor e abri os olhos, saltando do chão – O que está fazendo aqui? Pensei que só voltava de Saint Tropez amanhã.
- Houve um contratempo. Podemos entrar? Quero conversar com você.
- É pra ficar preocupada? Porque não vejo você tão sério desde a morte do Michel.
- Prefiro conversar lá dentro.

Marie me encarou preocupada, mas não fez mais perguntas e abriu a porta. Sentei na poltrona da sala e ela se sentou na mesa de centro, para ficar de frente para mim. Fiquei encarando ela em silêncio alguns segundos, ainda não sabia como contar, mas precisava dizer alguma coisa. Bastava um segundo de legilimência e ela descobriria tudo, e não era dessa forma que queria que ela soubesse.

- Encontrei a Terri ontem à tarde, tomamos um suco juntos no quiosque da praia – comecei e ela me interrompeu
- Por que algo me dizia que ela estava envolvida nisso? Vai me dizer o que? Que descobriu que ainda é apaixonado por ela e vão voltar? Porque se for, não perca seu tempo. Pode sair e não me faça ter que ouvir isso!
- Pare com isso, Marie. Já disse que nunca fui apaixonado por ela, só por você!
- Então qual é o problema? Por que está com essa cara de velório?
- Porque Terri estava grávida, teve um bebê há 7 meses atrás. E o pai desse bebê sou eu.

Depois de soltar tudo de uma vez, esperei que Marie falasse alguma coisa. Mas ela não falou. Ficou me encarando sem reação, e aquilo foi pior do que imaginava. Queria que ela dissesse qualquer coisa, até mesmo que me xingasse ou me batesse, mas aquele silêncio estava me matando.

- Não vai dizer nada? – arrisquei depois de alguns minutos

Ela então levantou ainda em silêncio, caminhou até a porta e a abriu. Depois me encarou novamente muito séria, como nunca havia visto antes. Era impossível dizer o que se passava na cabeça dela.

- Vai embora, por favor. – disse enfim, segurando a porta aberta
- Marie, por favor, não faz isso
- Vai embora, Ian. Quero ficar sozinha.
- Marie, eu não sabia! Quando ela engravidou ainda éramos namorados, eu não trai você! Nunca faria isso!
- Ian, agora não! Vai embora, por favor.

Ainda tentei argumentar, mas ela não disse mais nada e não vi outra alternativa que não fosse fazer o que me pedia. Sai do apartamento de cabeça baixa e fui direto para casa. Ainda precisava contar ao Bernard, e ao menos ele eu tinha certeza que não me deixaria sozinho.

ººº

Entrei no café escolhido por Viera e logo o avistei sentado em uma das mesas de fundo, lendo o jornal ainda de óculos escuros e com uma xícara de café em cima da mesa. Quando me aproximei e puxei uma cadeira vazia da mesa ao lado, ele abaixou o jornal e sorriu, tirando os óculos. Tinha os olhos vermelhos e uma cara abatida.

- Você ta um lixo – falei tentando não rir
- Manu não me deixa dormir... – respondeu rouco e não segurei a risada – E a Marie? Algum avanço?
- Nada, ela ainda não quer falar comigo – disse desanimado – Estou dando o espaço que ela pediu, não quero forçar nada. Mas está difícil sem ela...
- Fica tranqüilo, ela só precisa digerir tudo que aconteceu. Não é algo que se pede todo dia...
- É, eu sei, e espero que ela entenda um dia – sacudi a cabeça espantando o pensamento e olhei para ele rindo – Mas você realmente está um lixo, cara!
- Bom, não é só Manu que me deixa assim. Você também tem uma parcela de culpa.
- Ih sai pra lá! Gosto muito de você, mas meu negócio é mulher!
- Por mais boa pinta que você seja, também prefiro mulher – Viera riu e abriu a pasta, puxando um envelope e me entregando – Consegui isso ontem, por isso te liguei marcando hoje aqui.

Abri o envelope e tirei um bolo de fotografias. Eram todas de um bebê loirinho e de olhos azuis com um casal dentro de casa. Ela era linda. Não consegui conter o sorriso enquanto ia passando as fotos, e demorei mais na última. Ela sorria, e era igual a mim.

- O nome dela é Gabriela – Viera falou me fazendo sair do transe – O casal que está com ela na foto são Regina e Pascal Prevost, e eles ainda não têm a guarda definitiva dela, estão sob observação do juizado de menores.
- Então tenho chance de conseguir a guarda dela?
- Eles tem muitos pontos a favor deles que você não tem, mas você tem o trunfo principal. Você é o pai dela, e isso vai pesar bastante. Não vai ser nada fácil, meu amigo. Mas tenho certeza que vamos sair vitoriosos nessa batalha.

Viera bateu no meu ombro sorrindo e voltei a encarar as fotos na minha mão. Faria o que fosse preciso, mas ia ter minha filha comigo.
terça-feira, 12 de fevereiro de 2008


- Aonde você disse que vai??

Marie fechou a mala que tentava arrumar e cruzou os braços, parecendo irritada. Olhei para a expressão abismada dela e não pude deixar de rir, o que talvez não tenha sido uma boa idéia. Havia acabado de contar que ia a Saint Tropez por 3 dias a mando de Laport. Puxei-a para um abraço, mas ela continuou de braços cruzados.

- O que foi? Por que esse bico?
- Não me agrada a idéia de você ir a Saint Tropez sozinho – respondeu com a voz abafada no meu ombro – Você sabe por quê!
- Meu amor, e você sabe que não tem com o que se preocupar, não é? – Respondi rindo – E também não vou sozinho. Cecile e Pierre vão comigo
- Promete que não vai aprontar nada?
- Se está perguntando se vou procurar a Terri, a resposta é não. Mas se encontrá-la por acaso, sabe que não vou virar a cara e fingir que não vi, não é?
- É, sei... E não gosto de saber isso!
- Terri e eu agora somos só amigos. Quando me envolvi com ela, foi pra tentar te esquecer. Esquecer que você nem me dava moral. Agora não preciso mais disso, é você que eu amo. Não tem mais nada que ligue a Terri a mim, juro.

Marie deu um meio sorriso e sabia que ela havia entendido e não causaria problemas. Ela me ajudou a terminar de arrumar a mala e naquela mesma noite peguei estrada para Saint Tropez com Cecile e Pierre. A viagem podia ser a trabalho, mas não deixaria de ser divertida.

ººº

Dois dias de ‘trabalho árduo’ já haviam se passado e era de comum acordo que merecíamos algumas horas de folga. Deixamos os jalecos no hotel e voltamos ao calçadão da praia de bermuda, camiseta, chinelo e óculos escuros. Paramos no primeiro quiosque que encontramos vazio e não percebemos a hora passar. O sol começava a se pôr quando Cecile decidiu voltar ao hotel e teve o apoio de Pierre. Decidi ficar mais um pouco e eles se despediram, atravessando a rua.

Desde que o estágio havia começado, momentos calmos como esse eram raros. Na verdade, eram inexistentes. Quando não estava de plantão, preferia dormir e descansar para as próximas horas de ralação. Estava sentado olhando para a rua, distraído, quando vi uma figura conhecida passar. Era Terri. Não resisti à tentação e lhe chamei. Ela se virou espantada por ouvir minha voz e veio sorrindo na minha direção.

- O que está fazendo aqui, garoto? – disse me abraçando e sentando-se à mesa
- Trabalho. Me formei, finalmente, e consegui um estágio no hospital
- Que ótimo! Tinha certeza que conseguiria o estágio, estava se preocupando a toa. Mas não sabia que existia um hospital bruxo aqui em Saint Tropez
- Não tem, estamos aqui fazendo um curso básico de procedimentos trouxas com um amigo bruxo do nosso supervisor – tomei outro gole do suco e ri – É que houve um incidente lá no hospital e ele achou melhor que soubéssemos o que estávamos fazendo caso isso voltasse a se repetir. Mas e você? O que tem feito?
- A faculdade está tomando mais do meu tempo do que tinha previsto – respondeu parecendo exausta – Chego em casa e só tenho tempo de tomar banho antes de desmaiar. Consegui um estágio em uma TV local, mas quando me formar estou pensando em me mudar pra Paris. Aqui não tenho como crescer!
- Quando for para Paris, pode me procurar. Não conheço ninguém nessa área de cinema, mas ao menos conheço a cidade
- Não mora mais em Marselha?
- Não, estou dividindo um apartamento em Paris com Bernard e Dominique. Todo mundo conseguiu um estagio bom depois da formatura, estão todos morando na cidade. Manu e Viera se casaram semana passada.
- Embora sejam novos, imaginava que fossem casar logo. E você e a Marie? Se entenderam, finalmente?
- É, estamos juntos desde o fim de junho. Depois que Michel morreu resolvemos acabar com os joguinhos e nos acertamos de vez
- Não acreditei quando você me escreveu contando dele. Mas ao menos o culpado foi preso
- Sim, e vai apodrecer na prisão – sempre que lembrava isso, minha voz ainda saia cheia de ódio - Qual o problema, Terri? Você parece aflita...

Percebi que ela estava estranha, um pouco tensa, e não respondeu. Ficou me encarando muito séria e inconscientemente me vi usando legilimência para saber o que se passava. Levantei da mesa derrubando os copos e ela me olhou assustada. Minha expressão de alegria por estar revendo-a se evaporou em questão de segundos e fechei a cara, dividido entre o choque e a revolta.

- Como pode?? Por que não me contou?? – mesmo sem ver, sabia que estava vermelho de raiva
- Você não tinha o direito de ler meus pensamentos! – ela ficou de pé muito nervosa também
- Você está querendo falar de direitos comigo? - abaixei a voz quando algumas pessoas olharam – Eu tinha o direito de saber que estava grávida!

Sentei outra vez na cadeira ao ouvir o que eu mesmo tinha dito. Terri ficou grávida de um filho meu e não me contou. E pior, deu a criança para adoção depois do parto! Minhas mãos tremiam, não conseguia sequer segurar um copo sem que fosse deixá-lo cair e quebrar. Ela sentou outra vez tentando parecer calma, mas não obteve muito sucesso. Fiquei mudo por um longo tempo até conseguir me controlar e encarei-a outra vez.

- Você não tinha esse direito – falei com a voz controlada, mas cheia de raiva – Onde ela está?
- Não sei. Ela nasceu há cinco meses, bebês recém-nascidos são adotados rápido, é improvável que ainda esteja no orfanato
- Por que fez isso, Terri? Por que não me contou?
- Ian, pelo amor de Deus, o que você teria feito? – ela começou a chorar, mas não sentia um pingo de dó. Só me fazia ter mais raiva – Você ainda estava na escola quando descobri, ia largar seus estudos? Como poderíamos sustentar uma criança?
- Não cabia a você decidir isso sozinha. Não sei como faria, mas com certeza dá-la para adoção não seria uma opção! Você pode me achar inconseqüente, idiota e o que for, mas eu nunca fugiria de uma responsabilidade como essa! Você não sabe nada sobre mim! – gritei as últimas palavras e abaixei a voz outra vez - Foi por isso que terminou comigo por carta? Que nem ao menos foi me encontrar? Porque sua barriga já estava aparecendo? Não acredito que já tinha tudo planejado! Se não nos encontrássemos hoje por acaso eu nunca saberia que tinha uma filha?
- Se dependesse de mim, não! – ela secou as lágrimas e fechou a cara – Sua vida está melhor sem essa responsabilidade. Pode me xingar, me odiar, fazer o que quiser, mas um dia vai me agradecer pelo que fiz!
- Como pode pensar que vou lhe agradecer por isso? Você é louca, pensei que conhecesse você, mas vejo que estava errado! – levantei outra vez da mesa perdendo a calma – Em que orfanato você a deixou?
- O que vai fazer?
- AONDE VOCÊ A LARGOU?
- No orfanato Sainte-Eulalie, aqui em St. Tropez – larguei o dinheiro do meu suco na mesa e virei de costas. Ela segurou meu braço - Aonde você vai?
- Fazer o que você deveria estar fazendo!
- Você só pode estar brincando! Ian, você mal está dando conta do seu estágio, como pretende cuidar de um bebê? Não sabe nem cuidar de si mesmo!
- Como vou fazer isso não é da sua conta, mas não vou viver sabendo que tenho uma filha que não sabe da minha existência! – puxei o braço da mão dela com violência – E se um dia se arrepender, se um dia o remorso consumir você, ouse se aproximar dela e verá do que sou capaz!

Atravessei a rua sem nem olhar os carros que passavam buzinando com os motoristas berrando e desapareci dentro da primeira galeria que vi na minha frente. Procurei um banco vazio e sentei nele, sentindo minhas pernas começarem a perder força. Precisava falar com alguém, e naquele momento, tudo que queria era minha mãe.

Someone told me long ago
There's a calm before the storm
I know, it's been comin' for some time
When it's over, so they say
It'll rain a sunny day
I know, shinin' down like water

Rod Stewart - Have You Ever Seen The Rain?
quinta-feira, 27 de dezembro de 2007


23 de Dezembro de 1998, Hospital St. Napoleon

- Jingle Bells, Jingle Bells, acabou o papel. Não faz mal, não faz mal, limpa com jornal! O jornal tá caro, caro para chuchu. E agora o que eu faço pra limpar o meu...
- OI! – Cecile exclamou alarmada e Gabriela riu – Linda música, onde aprendeu?
- Foi o Ian que me ensinou – disse orgulhosa e sorri para Cecile
- Minha pupila, muito bom – dei três tapinhas leves na cabeça dela – É pra cantar no coral da igreja, na hora do seu solo
- Eu sei, não vejo a hora! A professora disse que vou ter uma parte inteirinha só pra mim!
- E vai fazer o maior sucesso com essa música – Cecile riu
- Ele me ensinou outra, quer ouvir? – falou empolgada e nem esperou resposta – Bate o sino pequenino, sino de Belém, vai chamar a...
- Não, está tudo bem, Gabriela! – Cecile interrompeu depressa – Já conheço essa, guarde para a ceia de Natal!
- Bom, já terminamos aqui – conferi mais uma vez se tinha dado todas as poções para a mãe dela – Temos que ir agora
- Ah, mas já? – Gabriela fez uma cara triste e abraçou Cecile – Vou ficar sozinha?
- Sua avó já chegou para lhe buscar, não vai ficar sozinha. Mas temos que atender outros pacientes – estendi a mão para ela bater – Nos vemos depois do natal, certo?

Gabriela exitou um pouco, ainda chateada por estarmos indo embora, mas acabou sorrindo e completando o aperto de mão que havia lhe ensinado. Fechamos a porta do quarto e esbarramos com Laport no corredor, conversando com Dubois. Pareciam não estar se entendendo muito, e Dubois lançou um olhar afetado na nossa direção antes de virar as costas e sumir por uma das portas.

- Estão de folga até dia 26 – Laport falou quando se aproximou. Sorrimos na mesma hora – Dubois não queria liberar os estagiários, mas não há porque mantê-los aqui com tantas pessoas da equipe escaladas para o natal.
- Podemos ir então? – Perguntei esperançoso. Ainda precisava comprar o presente da Marie
- Sim, estão liberados já, aproveitem as ultimas horas de lojas abertas. Mas estão escalados para trabalhar na virada do ano, precisamos do máximo de gente possível
- Tudo bem, não me importo em trabalhar dia 31 – Cecile respondeu de imediato
- Ótimo. Bom natal, aos dois – ele estendeu a mão para nos cumprimentar e descemos depressa até a sala dos funcionários para juntar as coisas e ir embora. Jingle Bells, Jingle Bells, acabou o papel. Não faz mal, não faz mal, limpa com jornal...

ººº

24 de Dezembro de 1998, véspera de natal, casa dos Laforêt

- Sabe o que é isso? – uma garota de cabelos quase brancos de tão loiros falou apontando para o alto
- Sim. – respondi a encarando – Azevinho. A casa está cheia deles.
- Sabe o que diz a regra para duas pessoas debaixo de um azevinho, não é?
- Sei, mas nunca fui de obedecer a regras.
- Que tal começar por essa? – me provocou
- Nah, não vejo motivo para isso – respondi desinteressado e ela saiu batendo pé, bufando para perto de um grupo de garotas de sua idade que riam

Estava na casa dos avôs de Marie, na tradicional festa de natal dos Laforêt. Aquela garota era uma de suas primas, assim como as demais do grupo para onde ela saiu marchando. Notei que elas me analisavam desde que cheguei, e bastou Marie se afastar um minuto para falar com um tio que elas avançaram. Olhei ao redor procurando por ela e vi a salvação sair por uma porta decorada no fundo da sala. Marie veio até mim e me abraçou, apontando para o azevinho e me beijando. As primas dela começaram a rir alto e a loira que me abordou torceu o nariz.

- Victoire veio lhe importunar, não é? – perguntou rindo e confirmei com a cabeça – Não liga, elas provavelmente queriam testar você, saber se era fiel ou algo assim. Típico delas, devem até ter apostado que Victoire não conseguiria o objetivo.
- Claro, como se eu fosse trair você dentro da casa da sua família – olhei torto para elas e pararam de rir – Tenho amor a minha vida.
- Pois é bom que continue tendo esse amor à vida fora daqui – disse em tom de aviso
- Não se preocupe quanto a isso – puxei-a para mais perto de mim e a beijei – Já tenho tudo que preciso
- Vai mesmo trabalhar no ano novo? – perguntou com a voz desanimada
- Sinto muito, mas não tenho opção. Deram folga aos estagiários no natal, pois é mais tranqüilo. Toda a equipe vai estar de plantão dia 31, sempre tem muitos acidentes. Já sabe o que vai fazer?
- Ainda não. Minhas primas me chamaram pra ir a Saint Tropez com elas, mas não sei se devo ir
- E por que não? Vá sim, não quero que passe a virada do ano em casa sem fazer nada. Divirta-se por mim, por favor.
- Todas elas bebem, e não bebem pouco, e ai vão sumir com algum cara por lá e eu vou ficar sozinha!
- Leve a Maddie com você – sugeri – Ela disse que Gabriel vai a um casamento dia 31 e a chamou para ir, mas que não vai porque seu pai faz aniversario dia 30 e vai ter festa.
- Levar a Maddie? Ela vai beber tanto quanto elas!
- Sim, mas não vai sumir com um ‘algum cara’, ela já tem namorado. Mesmo bêbada, vai ficar fazendo companhia a você.
- É, pensando por esse lado... – disse envolvendo os braços em volta do meu pescoço – Vou falar com ela amanhã. Vamos pra Saint Tropez no ano novo!
- Ótimo. Mande lembranças ao mar por mim...

Marie sorriu e me puxou para a mesa, onde as pessoas começavam a se servir da ceia convidativa preparada pelos elfos. Era bom aproveitar bem o natal, pois o ano novo não prometia ser nem um pouco divertido...

ººº

31 de Dezembro de 1998, Hospital St. Napoleon

- Só mais um minuto, Sr. Johnson, e vou terminar seu curativo. Não foi uma idéia muito boa soltar aqueles fogos, não é?
- Não foi idéia minha – o homem se defendeu sem jeito – Meu irmão comprou em uma loja em Londres semana passada. O fio enrolou no meu pé, não tive muito tempo de correr
- Em Londres? – perguntei curioso – Por acaso foi nas Gemialidades Weasley? – ele confirmou com a cabeça e ri – Ah, eles são geniais... Sr. Johnson, está sentindo as espetadas no pé?
- Não... Por que não sinto você furar meu pé?? – falou desesperado
- Calma, isso é normal, seu pé quase explodiu – acalmei-o – Só queria ter certeza para poder-

Interrompi a frase e olhei para o chão. O pé dele estava todo preto por causa da explosão e quando espetei o dedão, ele caiu. Fiquei olhando horrorizado para o buraco deixado pelo dedo e abaixei depressa para procurá-lo, mas não conseguia encontrar. Como o dedo sumiu? Acabou de cair!

- Poder o que? – quando viu que sumi debaixo da mesa, o homem soou assustado – O que foi? O que aconteceu? Não estou vendo!
- Fique aí, Sr. Johnson – falei com a voz abafada por estar debaixo da cama quando localizei o dedo – Volto em um instante! Não se mexa ou os curativos irão cair!

Levantei do chão enfiando o dedão no bolso do jaleco e sai correndo pelos corredores. Cecile estava preenchendo a ficha de um paciente e a puxei pelo braço depressa, arrastando até um canto vazio.

- O que houve? – disse puxando o braço de volta – Quem morreu?
- O dedo caiu!
- Que dedo?
- Do Sr. Johnson!
- Ok, Ian, primeiro: calma. Segundo: quem é Sr. Johnson?
- Sr. Johnson é o homem que chegou aqui por causa do acidente com os fogos! Eu fui espetar o dedo dele e acho que pus força sem perceber, ai caiu!
- Certo, não há motivo para pânico. Isso acontece, não é o fim do mundo – Cecile falava calma, pensando depressa – O que temos que fazer é costurar o dedo de volta, simples.
- Costurar? – olhei para ela incrédulo – Isso é um hospital bruxo, não costuramos coisas aqui! Prefiro contar ao Laport o que aconteceu.
- Laport está em outro setor. O responsável hoje é o Dubois.
- Vamos costurar como? – respondi depressa e ela riu
- Leve ele para a sala vazia do final do corredor e deixe o resto comigo. Encontro você lá em cinco minutos

Assenti com a cabeça e corri de volta até a cama onde ele estava, destravei a rodinha e sai empurrando ele correndo pelos corredores, ignorando as perguntas sobre o que estava acontecendo. Assim que estacionei a cama na sala vazia, tirei um frasco de poção sonífera do armário e o fiz beber. Era melhor que ele não presenciar a operação improvisada. Cecile entrou logo depois que ele apagou com o bolso estufado e selei a porta com um feitiço.

- Onde conseguiu isso?
- Um dos estagiários mais velhos queria experimentar medicina trouxa e tinha guardado
- Sabe fazer isso? – perguntei preocupado – Quero dizer, ele não vai acordar com o dedo ao contrario, não é?
- Relaxe. Minha avó me ensinou a costurar. Sei que não é uma cortina, mas não é tão diferente assim. Só é um pouco nojento. Se afaste, não quero que me desconcentre.

Dei dois passos para trás e deixei que ela trabalhasse em paz. Observei calado Cecile cruzar uma agulha torta no dedo dele de um lado para o outro e minutos depois ele estava encaixado no pé, como se nem tivesse caído. A única coisa que deixava claro que algo havia acontecido ali era a linha preta ligando o dedo e o buraco. Enquanto destravava a cama para removê-lo de volta a ala onde estava, uma caixinha caiu do bolso dele. Apanhei do chão e vi que era um dos fogos das Gemialidades Weasley.

- Ei Cecile, olhe! – falei animado mostrando a caixa a ela – Quer ver uma queima de fogos na virada do ano?
- Faltam 5 minutos para a meia noite, alguns curandeiros estão no terraço com champagne... – respondeu já sorrindo e consultando o relógio
- Então só falta um show pirotécnico pra festa ficar completa!

Empurramos a cama do Sr. Johnson às pressas de volta para ala e subimos de elevador até o último nível. Faltavam apenas alguns segundos para a meia noite quando alcançamos os demais e logo empurraram taças em nossas mãos. Subi no parapeito do terraço e acendi os fogos quando a contagem regressiva chegou ao fim e luzes coloridas explodiram no céu de Paris, ao som dos gritos de vivas e desejos de feliz ano novo dos curandeiros e estagiários que agora faziam parte do meu dia-a-dia. Não era o tipo de comemoração de ano novo que teria planejado, mas foi boa assim mesmo. E esperava ter outras assim por muitos anos aqui nesse mesmo terraço velho...
sexta-feira, 14 de dezembro de 2007


(¯`·._.· [Memórias de Samuel Berbenott - Olimpíadas] ·._.·´¯)

A palestra para os voluntários havia terminado há poucos minutos. Me afastei dos meus amigos para ir até a tenda de canoagem pegar meu crachá e alguns outros voluntários já estavam por ali.

‘Por favor, essa fila é para a de canoagem?’ perguntei para uma mulher que estava logo na minha frente da fila, e ela se virou. Era morena, com destacáveis olhos verdes e curvas. Linda. E muito, muito familiar. Nos encaramos uns segundos, incrédulos, e rimos. ‘Letícia???’

‘Samuel! O que você está fazendo aqui?’ ela perguntou tão surpresa quanto eu estava.

‘Sou voluntário, na canoagem. Não vá me dizer que você também?!’

‘Exatamente! Entrei de férias do time de quadribol, antes de começarmos os preparatórios para a Copa Mundial, e achei que seria legal ser voluntária aqui... E você, o que anda fazendo?’

Pegamos nossos crachás e saímos andando juntos até os jardins congelados do castelo. Contei a ela que tinha me formado, estava trabalhando no Departamento de Esportes Mágicos do Ministério da Magia Francês e jogando no Caerphilly Catapults. Ela me contou dos treinos no Time Nacional do México e da vitória no Torneio Americano de Quadribol.

‘Tem uma coisa que quero te devolver...’ disse puxando de dentro da camisa um cordão com uma aliança dourada.

‘Não quero que me devolva isso, Samuel. Apesar de nosso casamento não ter sido de verdade, quero que fique com essa aliança’ ela esticou o cordão de volta para mim, sorrindo. ‘Eram dos meus avôs, e eu acho que escolhi uma pessoa bastante legal para dividir comigo. Somos bons amigos, e essas alianças são o símbolo disso, certo?’

‘Certo. Vou continuar carregando ela comigo então.’ Sorri e recoloquei o cordão no pescoço. Passamos mais um par de horas conversando sobre todo o tempo em que não nos víamos e ao final do dia eu realmente pensei que as Olimpíadas seriam mais surpreendentes do que eu esperava...

°°°°°

‘Adivinha quem é?’ disse baixo no ouvido de Anne enquanto minhas mãos tapavam seus olhos. Ela riu.

‘O mesmo Samuel de sempre, não é?’ ela tirou minhas mãos dos olhos dela e se virou para me ver. ‘Estava com saudades...’

‘Eu também’ sorri enquanto a envolvia em um abraço apertado e a beijava.

As carruagens de Beauxbatons haviam aterrissado a poucos minutos do lado de fora do frio castelo de Durmstrang, e uma massa de atletas franceses já se misturavam com várias outras nacionalidades, ignorando os gritos da professora de etiqueta, Defossez, para que formassem uma fila única e organizada e se preparassem para a abertura.

Hem hem’ um rouco bem ao meu lado fez com que me desgrudasse de Anne um minuto e virasse para olhar a garota alta que nos encarava com um sorrisinho cínico e as mãos na cintura: Isabel. ‘Não queria interromper, mas estava me perguntando quando o Sr. Berbenott pretendia se soltar dos amassos públicos em vossa namorada para dar um abraço na velha amiga?!’

Olhei de Isa para Anne e rimos nos afastando um pouco.

‘A Isa você pode abraçar, ok? Só a Isa.’ Anne disse sorrindo e piscando para Isa, que retribuiu a piscadela antes de se jogar em cima de mim. A rodei no ar uns segundos.

‘Malandro! Fica famoso e nem dá as caras para visitar mais os amigos, é?’ Isa perguntou em um tom falsamente ofendido enquanto me beliscava na costela. Saltei para longe das mãos dela.

‘Ouch. Isso dói, Isa. Não tive tempo para ir a Beauxbatons ainda, mas agora estamos todos aqui!’

‘Estão todos aqui, sim senhor, Samuel Berbenott. Mas eu sinceramente adoraria que o senhor e as senhoritas McCallister e Renault deixassem de conversinhas paralelas agora.’ Uma voz seca e rígida disse logo atrás de mim. Professora Defossez me encarava parecendo nervosa.

‘Como vai professora Françoise? Elegante como sempre, estou vendo...’ sorri amarelo e puxei sua mão dando um beijo. Ela se livrou rapidamente e olhou ao redor parecendo consternada.

‘Já vi que o senhor não prestava a mínima atenção em minhas aulas. Lamentável.’ ela disse e Anne abafou uma risada. Isa, porém, encarnara o espírito de aluna exemplar das aulas de etiqueta e havia endireitado a postura, olhando Defossez com respeito e cordialidade. ‘Agora, se me faz o favor de voltar para perto dos outros voluntários?! Posso saber o que ainda estão fazendo paradas aqui, Renault e McCallister?’

Anne e Isa me acenaram e se afastaram para a volumosa onda de alunos com uniformes azul-céu, impecavelmente vestidos, que agora se preparavam para entrarem em Durmstrang. Isa tomou a dianteira da fila, ao passo em que Defossez a entregava a bandeira com o grande brasão de Beauxbatons na mão. Senti um aperto no peito de me lembrar dos melhores anos da minha vida, que haviam sido deixados para trás.

°°°°°

Anne, Bel, Isa e Brenda estavam no podium recebendo a medalha de ouro na Canoagem, prova de Caiaque K4. Eu e Letícia as observávamos um pouco distantes, enquanto David as entregava as medalhas e arranjos de flores. Assim que o hino da França acabou, Anne desceu correndo animada e saltou em cima de mim me dando um beijo. A torcida de Beauxbatons também já tinha descido para comemorar mais uma medalha.

‘Ganhamos!’ ela disse se soltando e me mostrando a medalha.

‘Eu vi. Parabéns!’ ri. ‘Anne, quero te apresentar a Letícia’

Tanto Anne, quanto Letícia, me olharam surpresas. Mas eu estava determinado a apresentar as duas.

‘Letícia é uma amiga minha, antiga. E Anne é a minha namorada.’

‘Futura esposa, Samuel. Não ouse querer fugir do compromisso...’ Anne falou brincalhona e Letícia e eu trocamos um olhar significativo. As duas se deram as mãos em cumprimento.

‘Nem pensei nisso’ disse abraçando Anne.

‘Foi um prazer, Anne.’ Letícia sorriu para nós dois. ‘Bom, agora tenho que ir preparar a próxima prova. Nos vemos depois, Samuca.’

Ela se afastou em direção ao lago e a acompanhei com o olhar, até sumir atrás de vários caiaques.

‘Não sei por que, mas estou com a sensação de que tem alguma coisa sobre essa Letícia que você quer me contar, Samuel...’ Anne me olhou desconfiada e abaixei os ombros.

Não adiantaria adiar. Antes que pudesse preparar um discurso indiferente quanto ao caso, relatei a Anne minha viagem ao México em detalhes. A noite de tequila, o casamento na praia, como eu e Letícia havíamos amanhecido na mesma cama e sem nos lembrarmos de nada, e como tínhamos nos divorciado. No final das contas, ela saiu irritada pedindo para que eu não a seguisse pois precisava de um tempo para absorver a idéia de que eu era, na verdade, um legalmente separado.

°°°°°

‘Será que já podemos conversar?’ perguntei alto para Anne, que estava sentada sozinha ao lado da janela, enquanto a festa de despedida das Olimpíadas explodia ao nosso redor, e olhava os jardins escuros de Hogwarts. Ela sacudiu a cabeça sem dizer nada e me sentei ao lado dela. Como não havia mais nada a dizer, esperei que ela tomasse o tempo necessário para que começasse a gritar, brigar e socar a raiva que supostamente estaria sentindo de mim, mas quando ela falou, foi em seu tom de voz natural e calmo.

‘Por que não me contou antes que já tinha sido casado?’

‘Por que isso não fez a mínima diferença na minha vida’ respondi displicente e ela desviou os olhos dos jardins para me encarar.

‘Então você trata um casamento assim? Com toda essa naturalidade?’

Não foi um casamento de verdade!’

‘É claro que foi! O padre, as alianças, o livro do cartório! Vocês acordaram no mesmo quarto, na mesma cama! É claro que foi um casamento de verdade!’

‘Na prática! Mas não representou nada para nenhum de nós dois!’ disse na defensiva. Ela se voltou para a janela novamente. ‘Olha para mim...’ disse sério e ela me olhou. ‘Eu amo você, ok? Letícia é uma boa amiga, e SÓ isso. Já faz muito tempo que tudo aconteceu, eu nem me lembrava mais disso. Eu fui sincero em tudo o que te disse até hoje! Será que podemos simplesmente encarar tudo isso como passado?’

Ela ficou me olhando vacilante um minuto e então se aproximou e me abraçou com força, pousando a cabeça em meu ombro.

‘Podemos. Mas não quero me decepcionar com você, Samuel. Já não basta meus pais mimarem meu irmão idiota! Não você!’

‘Nunca faria nada para te machucar. Tirando, talvez, a goles que acertei na sua cabeça...’ ela riu e me beijou lentamente.

‘Brenda me disse de uns túneis mais escuros, depois que acabam os dormitórios...’ disse baixo no meu ouvido.

‘É? Hum... Quer que eu te leve lá para conhecer?’ Perguntei brincalhão, mas ela sorria de uma maneira diferente. Determinada.

‘Adoraria’

Saí puxando ela entre os estudantes e voluntários que aproveitavam sua última noite de diversão para dançarem e conversarem, e em poucos minutos alcançamos os tais túneis, parando vez ou outra para trocarmos beijos e nos livrarmos de uma peça de roupa ou assuntos mal-resolvidos...

I’ve found a reason to show
A side of me you didn’t know
A reason for all that I do
And the reason is you

N.A.: The reason – Hoobastank